O uso do decúbito prono nos pacientes com S.D.R.A (Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo)









Introdução

A Síndrome do Desconforto Respiratório do Adulto (SDRA), descrita por Asbaugh et al. em 1967, é caracterizada por hipoxemia aguda decorrente de alteração da relação entre ventilação e perfusão pulmonares. Este quadro é a tradução do comprometimento heterogêneo do parênquima pulmonar, com colapso e inundação alveolar por exsudato inflamatório, constrição e obliteração vasculares.

Ao lado da hipoxemia (PaO2/FiO2<200), característica e indicativa da gravidade da SDRA, a hipertensão pulmonar surge igualmente associada à elevada mortalidade nas diversas situações que conduzem à Insuficiência Respiratória Aguda. Neste contexto a hipertensão pulmonar aumenta a filtração capilar, acentua o edema alveolar e promove disfunção ventricular direita.

Nas fases iniciais da síndrome, a hipertensão pulmonar decorre da vasoconstrição hipóxica, à ação de mediadores circulantes, como a tromboxane A2, a endotelina e o fator de ativação plaquetária. Tardiamente, a hipertensão pulmonar se mantém em razão de micro-trombose difusa, hipertrofia da camada média das arteríolas, fibrose e destruição da vasculatura pulmonar.

O colapso gravitacional é uma constante. Como recentemente demonstrado existe uma preferência gravitacional das áreas condensadas, sendo que o pulmão comporta-se como um verdadeiro "corpo líquido", ou seja, desaba sobre si mesmo sobre o efeito da gravidade. Isto significa que as porções dependentes do pulmão estão sujeitas a uma pressão externa (atuando no sentido do colapso alveolar) proporcional a sua posição dentro do tórax.

Essas características fazem com que o volume corrente se distribua de forma bastante nociva durante cada inspiração, distribuindo-se preferencialmente por áreas previamente abertas, causando uma hipertensão das áreas superiores.

Até muito recentemente as possibilidades terapêuticas na insuficiência respiratória restringiam-se a elevar a fração inspirada de oxigênio e os níveis de pressão positiva. Todavia em virtude da toxidade pelo oxigênio e do risco de barotrauma, essas alternativas podem piorar o quadro.

No pulmão normal a relação gás-tecido é de aproximadamente 30% de tecido e 70% de gás. No pulmão na SDRA essa relação gás-tecido diminui, aumentando a quantidade de tecido e diminuindo a complacência pulmonar, por edema alveolar, o que diminui o tamanho do alvéolo.

A redução dos espaços alveolares correspondente às áreas de consolidação fixa pode ultrapassar 50% na SDRA e exige redução proporcional do volume corrente, para evitar danos ao tecido sadio, volotrauma, e piora do quadro. A ventilação com volumes correntes convencionais (10 a 15 ml/kg de peso) resulta apenas em hiperdistensão e agressão. Torna-se necessário adotar volumes correntes, tanto menores quanto mais extensa a consolidação.

Outra descoberta recente foi a presença de lesões císticas na fase tardia da SDRA. De acordo com a descrição de Rouby et al. Haviam dois tipos básicos de lesões císticas: os pseudocistos (menores que 4cm - espaços aéreos alargados localizados nas áreas de inflamação/cicatrização) e os cistos subpleurais (que correspondem a coleções de ar intersticial).

Baseando-se nesses dados algumas conclusões sobre a fase tardia da SDRA foram propostas; primeiro, que a fase tardia da SDRA pode simular a displasia broncopulmonar do recém-nascido (dilatação das vias aéreas terminais alternando-se com áreas de colapso alveolar). Segundo, que as lesões císticas, recentemente descritas em estudos com tomografia computadorizada, podem representar este quadro de displasia broncopulmonar.

Já se sabe que a ventilação mecânica tem um importante papel não só na perpetuação da injúria pulmonar, mas também na sua gênese. O edema pulmonar, por exemplo, está ligado a altos volumes e não a altas pressões (especificamente alto volume final). Este tipo de edema relaciona-se a alteração da permeabilidade vascular (edema não hidrostático), e, com 20 minutos apenas de ventilação danosa já se pode detectar edema alveolar profuso, líquido rico em proteínas, destruição das células epiteliais, principalmente do tipo I e espaço alveolar com deposição de fibrina- membrana hialina.

Em pesquisas em animais sadios, o uso de volumes correntes altos, obtidos tanto com pressões alveolares positivas quanto com pressões pleurais muito negativas, era capaz de levar ao aparecimento de uma lesão pulmonar aguda indistinguível da SDRA em 20 minutos. Então, a injúria pulmonar produzida pela ventilação mecânica é um fenômeno "volume-dependente", muito mais que "pressão-dependente".

Sabe-se que o nível de pressão inspiratória também tem influência no grau de lesão pulmonar. Ackeman et al. produziram grave distrofia broncopulmonar em babuínos utilizando suspiros gerando altas pressões numa ventilação de alta freqüência. Mesmo com uma freqüência de 1 suspiro por minuto, pseudocistos de até 2 cm de diâmetro foram notados (indicando uma extrema dilatação dos bronquíolos respiratórios) associados algumas vezes a enfisema intersticial.

Com a adição do conceito de volotrauma e a necessidade de ventilação com volumes correntes menores, e baixos picos de pressão inspiratória, apareceu outro agente pernicioso, o colapso alveolar expiratório.

A ventilação com pequenos volumes e baixas pressões, conquanto menos lesiva, nem sempre atende a homeostase do oxigênio e do gás carbônico. A hipercapnia dela resultante determina expressivas alterações cardiovasculares, incluindo agravamento da hipertensão pulmonar. Mais do que uma área geradora de shunt, as áreas colabadas do pulmão pareciam atuar como um foco multiplicador de lesões, especialmente quando sujeitas ao fenômeno cíclico de abre-e-fecha a cada ciclo respiratório.

A cada ciclo de fechamento alveolar, perde-se surfactante para a via aérea terminal, aumentando a tensão superficial dentro do alvéolo. Isto aumenta mais ainda a tendência ao colapso e diminui a complacência pulmonar.

Manobras capazes de prevenir o colapso alveolar expiratório parecem ter um efeito protetor neste pulmão de SDRA, por exemplo, o uso da PEEP acima do ponto de inflexão da curva pressão-volume e o uso da posição prono.

Outro fator importante no prognóstico do paciente em ventilação mecânica é a translocação bacteriana. Recentes estudos elaborados por Marini et al. demonstraram que a translocação bacteriana está relacionada ao modo ventilatório empregado. Altos valores de pressão inspiratória positiva lesam o clearence de bactérias no pulmão, aumentam a resposta de leucócitos e causam bacteremia (efeitos com 30 minutos de ventilação).

Decúbito Prono

A utilização da posição prona na SDRA foi relatada há mais de 20 anos. Desde Piehl et al., em 1976, diversos estudos realizados em pacientes e modelos experimentais com SDRA, tem se demonstrado que a posição prona é capaz de melhorar a PaO2, a heterogeneidade do gradiente V/Q, a complacência pulmonar, além de diminuir o shunt e promover o recrutamento alveolar, associado ao uso da PEEP.

Em pulmões sadios as relações ventilação/perfusão não são iguais em todo o pulmão. Convém lembrar que os alvéolos próximos ao ápice de um pulmão vertical são menos bem ventilados que os próximos da base, em virtude dos efeitos da gravidade sobre a distribuição das pressões pleurais (e transpulmonares). Contudo, os alvéolos próximos do ápice do pulmão recebem menos fluxo sangüíneo que aqueles próximos da base, por causa dos efeitos da gravidade sobre a circulação pulmonar.

Como a redução no fluxo sangüíneo do ápice para a base do pulmão é mais acentuada que a redução na ventilação, a relação V/Q (ventilação alveolar/perfusão) também é diferente nos alvéolos das diferentes regiões dos pulmões.

A presença de alvéolos com relações V/Q amplamente diferentes em um mesmo pulmão reduz a eficiência global da troca gasosa.

De fato, o colapso dos alvéolos instáveis na SDRA guarda relação com as forças gravitacionais. A posição prona determina descompressão e reexpansão alveolar dos seguimentos dorsais, áreas de maior atelectasia e edema durante o tratamento convencional em posição supina.

Esta manobra parte do princípio da relação V/Q relacionada à gravidade. Como a perfusão também é maior nas áreas dependentes, com a mudança de decúbito a distribuição da perfusão passa a privilegiar a região que estava mais aerada, atenuando o shunt pulmonar.

Em estudo randomizado realizado em animais por Wiener et al., em 1990, verificou-se que o fluxo sangüíneo está preferencialmente distribuído para áreas dorsais pulmonares, independente da posição, sendo a área dorsal mais vascularizada. Isto explica o porquê da mesma quantidade de atelectasia na área ventral e dorsal resultarem em diferenças no shunt.

Na SDRA, através da posição prono, verifica-se na tomografia computadorizada do tórax, deslocamento das densidades pulmonares paravertebrais para a região anterior. Em situação retroesternal forma-se novo edema, enquanto reabsorve-se aquele anteriormente presente na região dorsal. Pelosi et al. assinalaram que. Na região dorsal, há um aumento de volume disponível para a ventilação, visto que o coração ocupa espaço relativamente significativo da região anterior da caixa torácica. Então em prono, a parte do pulmão que permanece para cima é maior, em torno de 60%. Takashi et al., em 1992, e Wayne et al., em 1994, em animais, verificaram que a pressão pleural no pulmão com SDRA é menos negativa nas áreas não dependentes e que a pressão transpulmonar é maior que a pressão de abertura de vias aéreas em prono, distribuindo assim o fluxo de ar mais uniformemente.

Baseado em numerosos estudos clínicos, pode-se presumir que a posição prono melhora os valores médios da oxigenação arterial, mas esta melhora é variável, geralmente progressiva no tempo (horas), e, alguns pacientes não apresentam melhora (aproximadamente 25%). Pode-se observar uma distribuição mais homogênea da insuflação regional pulmonar no final da expiração e uma diminuição da complacência torácica. Esta última se deve ao posicionamento superior da rígida parede torácica posterior e ao "endurecimento" da complacência esternal, agora repousando sobre o leito.

Foi relatado que após o retorno a posição supino a PaO2 diminui, porém permanece maior que antes. Além disso a complacência pulmonar melhora sistematicamente após a posição prono. Jolliet et al., 1998.

Walther et al., em 1998, em estudo randomizado feito em 9 cachorros verificou que a vasoconstrição por hipóxia pulmonar é maior em supino comparada com prono, devido a maior heterogeneidade do gradiente V/Q, havendo assim maior necessidade de fluxo de sangue para as áreas aeradas.

O índice de mortalidade também foi maior no grupo de pacientes não tratados com decúbito prono (estudo comparativo).Flaaten et al.,1998.

Objetivos

Neste estudo, temos como objetivo a avaliação da melhora da oxigenação através da média da relação PaO2/FiO2 e da média da D (A-a)O2, após 1 hora de prono.

Não avaliamos a morbi-mortalidade dos pacientes com SDRA relacionados a técnica empregada, bem como o tempo de internação e necessidade de CTI.

Materiais e Métodos

No ano de 1999, foram selecionados 5 pacientes com diagnóstico de SDRA, de acordo com a sociedade Américo-Européia de Pneumologia e Terapia Intensiva que estabelece os seguintes critérios:

Hipoxemia refratária acentuada, com relação PaO2/FiO2<200;
Infiltrado bilateral difuso observado ao RaioX de tórax;
Edema pulmonar não cardiogênico (PCP<18 mm Hg).

Dos cinco pacientes 40% eram mulheres, e 60% homens. O grupo era bastante heterogêneo com etiogenias diferentes para SDRA (60% eram pós-operatório de cirurgia cardiovascular e 40% eram pacientes clínicos). ( TAB.1)

Os pacientes eram ventilados segundo Consenso de Estratégias Protetoras de Ventilação Mecânica. Usamos ventiladores de terceira geração (modelo Infrasonics Adult Star), ciclados a volume. O volume corrente foi estabelecido entre 6 a 8, chegando até 4 ml/Kg, o pico de pressão foi limitado em 40 cm de H2O e a P.platô até 35 cm de H2O, com intuito de evitar barotrauma. A "best PEEP" foi titulada pela medida de melhor complacência pulmonar, variando entre 10 a 15 cm de H2O .

Foi usada curva de fluxo decrescente por ser mais fisiológica e por despender menor trabalho respiratório pelo paciente.

Antes da colocação em prono, os pacientes foram sedados e se encontravam estáveis hemodinamicamente. Foi trocada a fixação do tubo, e a aspiração foi feita quando necessária. Antes e 1 hora após o prono, foram feitas medidas de gasometria, de mecânica pulmonar, de câmaras cardíacas através do cateter de Swan-Ganz e colhidos os dados vitais.

Os pacientes eram então colocados em prono e ficavam prono-dependentes por 6 horas, após as 6 horas, eram colocados por 3 horas em decúbito lateral direito, 3 horas em decúbito dorsal e 3 horas em decúbito lateral esquerdo, não necessariamente nesta ordem. Foi necessário em média 1 a 2 dias de tratamento, sendo a técnica interrompida quando houve estabilidade gasométrica.

É importante lembrar que o paciente em prono foi atendido da mesma forma pela fisioterapia.

Discussão dos resultados

De acordo com Flaaten et al., podem ser considerados responsivos primários, todos aqueles pacientes que apresentaram, após a 1a. hora de prono, uma melhora de mais de 10% da relação PaO2/FiO2 do valor da baseline em supino.

Concluimos que todos os cinco pacientes com diagnóstico de SDRA, tratados com decúbito prono foram responsivos primários, uma vez que todos obtiveram uma melhora significativa após 1 hora de prono. (GRAF. 1)


GRÁFICO 1 - Aumento da relação PaO2/FiO2 após 1 hora de prono nos 5 pacientes com diagnósticos de SRDA. FONTE - Biocor Instituto, 1999

Também foi observada uma melhora gradativa na média PaO2/FiO2 e na média da D(A-a)O2, observada pelas curvas dos gráficos 2 e 3 :


GRÁFICO 2 - Média da relação PaO2/FiO2 dos 5 pacientes colocados em prono. FONTE - Biocor Instituto, 1999


GRÁFICO 3 - Média da D(A-a)O2 nos 5 pacientes colocados em prono. FONTE - Biocor Instituto

Sob o ponto de vista da melhora da D(A-a)O2 confirmamos os resultados obtidos por Vollman et al. em 1996 em estudo prospectivo, feito em 15 pacientes, no qual verificou-se uma queda desta diferença após o uso do decúbito prono.

Observamos uma queda da PaO2 quando os pacientes eram retirados do prono, porém estes valores ainda permaneciam mais altos do que antes da utilização da técnica.

Dentre as complicações observadas por nós podemos citar: edema de face, principalmente palpebral, que cedeu após a interrupção da técnica, e úlcera facial de stress, principalmente em orelha.

Conclusão

Concluímos que a utilização do decúbito prono é efetiva para melhorar a taxa de oxigenação sangüínea dos pacientes com SDRA, provavelmente por diminuir a heterogeneidade da relação V/Q em todo o pulmão.

Reafirmamos então a observação feita por Gattinoni, na qual conclui-se que "o decúbito prono na SDRA não causa apenas uma melhora transitória nas trocas gasosas, mas funciona como uma manobra de recrutamento com efeitos positivos a longo prazo.

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9 - JOLLIET , P . et al. Effects of the Prone Position on gas Exchange and Hemodinamics in Severe Acute Respiratory Distress Syndrome Critical Care Medicine , v. 26 , n . 12 , p. 1977 - 1995 , dec . 1998.

10 - CARVALHO W . B . , BONASSA J . , CARVALHO C . R . , AMARAL J . L . G , BEPPU O . S. , AULER J. O . C . , Atualização em Ventilação Pulmonar Mecânica , 1997.

 

Artigo Publicado em: 25/02/2001
Autor(es):
Elizabeth D'Alessandro
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