Efeito da continuidade da fisioterapia respiratória até a alta hospitalar na incidência de complicações pulmonares após esofagectomia por câncer
As cirurgias no compartimento abdominal superior e as torácicas apresentam a maior incidência de morbidade e mortalidade de causa respiratória1,2, sendo que a taxa de complicações pulmonares no pós-operatório varia entre 20% e 69%3. Dentre as cirurgias, a esofagectomia é o tipo abdominal que mais comumente cursa com complicações respiratórias, especialmente quando realizada com acesso torácico, superando as taxas observadas nas ressecções pulmonares4-6. Essa elevada ocorrência deve-se principalmente a broncoaspiração, complicações cardíacas, infecções, pneumonias, insuficiência renal ou respiratória e sepse7.
A alta incidência de complicações pulmonares após esofagectomias tem sido apontada há décadas e diversas técnicas intra- e pós-operatórias de caráter profilático têm sido utilizadas com o objetivo de reduzir a morbidade dessa cirurgia4,8. A grande maioria dos estudos indica uma prevalência de 20 a 35% de complicações gerais em pacientes submetidos à ressecção do esôfago3-5,8-10. Entretanto, há relatos de que a prevalência de acometimentos respiratórios supere os 30%, independentemente dos critérios adotados para determinar o que seja considerado complicação, podendo causar óbito em até 55% dos casos2,11.
A eficácia da fisioterapia respiratória durante o período pós-operatório em pacientes submetidos a cirurgias abdominais altas inclui a reversão de atelectasias e a melhora na saturação de oxigênio12-16. Além disso, se realizada de maneira profilática, a fisioterapia respiratória também parece reduzir a incidência de pneumonia em pacientes de alto risco submetidos a cirurgias abdominais altas17. Vários estudos avaliam o efeito da fisioterapia respiratória em pacientes submetidos a cirurgias abdominais, mas esses estudos não discriminam as cirurgias segundo o porte18,19, e não há como comparar as complicações pós-operatórias de uma colecistectomia ou de uma correção de hérnia inguinal com aquelas verificadas na esofagectomia, que é a cirurgia com maior morbimortalidade respiratória4,13. Numa análise detalhada das revisões sistemáticas sobre a efetividade da fisioterapia nas complicações pós-operatórias abdominais altas, os autores17 constataram que não foi analisado um único caso de esofagectomia, portanto não se conhecem estudos que avaliaram os efeitos da fisioterapia respiratória nas complicações dessa cirurgia.
O objetivo do presente estudo foi pois o de avaliar os efeitos, sobre a incidência de complicações pulmonares, do cuidado contínuo de fisioterapia respiratória após o período crítico até a alta hospitalar, de pacientes submetidos à esofagectomia por câncer de esôfago.
METODOLOGIA
Foram estudados retrospectivamente 40 pacientes consecutivos (nenhuma exclusão) submetidos à esofagectomia por câncer de esôfago num hospital universitário entre abril de 1999 e abril de 2004. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital (protocolo n. 179/05).
Os sujeitos foram divididos em dois grupos (n=20): pacientes submetidos à esofagectomia entre junho de 1999 e junho de 2001, que receberam fisioterapia respiratória somente na unidade de terapia intensiva (gUTI); e pacientes submetidos à esofagectomia entre julho de 2001 (quando passou a ser oferecido o atendimento de fisioterapia na enfermaria cirúrgica) e abril de 2004, que receberam cuidados de fisioterapia respiratória no período pós-operatório na enfermaria, até a alta hospitalar (gALTA). Todos os casos analisados receberam cuidados de fisioterapia respiratória após a cirurgia na unidade de terapia intensiva (UTI). As informações referentes aos períodos pré e intra-operatórios e as complicações pós-cirúrgicas foram obtidas do prontuário dos pacientes.
Dados pré-operatórios: foram coletadas informações no prontuário dos pacientes referentes a idade, sexo, peso, altura, índice de massa corpórea (IMC, calculado pelo produto do peso, em quilogramas, dividido pela altura em metros ao quadrado), dados clínicos, diagnóstico, hábitos e vícios (tabagismo e etilismo).
Dados dos procedimentos cirúrgicos: foram coletadas informações sobre tipo e duração das cirurgias e dos procedimentos anestésicos.
Dados pós-operatórios: as informações referentes à evolução clínica observada no período entre a cirurgia e a alta hospitalar incluíram os seguintes eventos considerados como complicações pulmonares pós-operatórias (CPO):
(1) atelectasia - confirmada pela imagem radiográfica de redução do volume pulmonar associada à opacificação num lobo pulmonar, podendo estar relacionada à queda da pressão parcial de O2 no sangue arterial ou saturação periférica de oxigênio16;
(2) pneumonia - definida como presença de um infiltrado radiográfico com adição de pelo menos dois dos seguintes eventos: temperatura corpórea superior a 37,7°C, contagem de células brancas sangüíneas acima de 10.500/µL e/ou demonstração de organismos patogênicos;
(3) derrame pleural - identificado na radiografia de tórax pela presença de velamento de seio costofrênico, podendo conter imagem de menisco quando houvesse acúmulo de líquido no espaço pleural20.
Fisioterapia respiratória: todos os pacientes (do gUTI e do gALTA) receberam cuidados respiratórios na UTI, porém apenas os pacientes do gALTA continuaram a receber atendimento de fisioterapia respiratória durante sua estadia na unidade de internação após a cirurgia. O atendimento de fisioterapia respiratória na enfermaria não foi protocolado, mas orientado pelo mesmo profissional fisioterapeuta durante todo o período avaliado e foi aplicado com base nas condições clínicas dos pacientes visando: (i) reduzir ou prevenir o acúmulo de secreção brônquica (através de estímulo de tosse e manobras para higiene brônquica); (ii) melhorar a ventilação pulmonar (por meio de exercícios de respiração profunda e uso de inspirômetros de incentivo); e (iii) estimular o paciente a deambular o mais precocemente possível após a cirurgia. A duração do atendimento de fisioterapia foi, em média, de 20 minutos e nenhum paciente foi submetido a exercícios com pressão positiva.
Análise estatística: para a análise dos dados, foram considerados os seguintes parâmteros: sensibilidade (power) de 80%; e nível de significância de 5% (p<0,05). O teste de Kolmogorov-Smirnov foi usado para analisar os dados de distribuição normal. Os dados de distribuição não-paramétrica foram comparados pelo teste de Mann Whitney (rank sum). O teste qui-quadrado foi usado para comparar percentuais entre os grupos. O nível de significância foi ajustado em 5% (p<0,05).
RESULTADOS
Os pacientes do gUTI e gALTA apresentaram características antropométricas similares com relação à idade, sexo e IMC (Tabela 1). Antecedentes etílicos dos grupos gUTI e gALTA também foram semelhantes, mas o gUTI apresentava uma história de tabagismo mais importante do que o gUTI (Tabela 1). O gUTI também apresentava maior número de pacientes idosos (maiores de 65 anos) quando comparado ao gALTA (respectivamente, 25% vs 15%), apesar de na média não haver diferença estatística.
Os procedimentos cirúrgicos realizados foram de dois tipos: esofagectomia trans-hiatal (com laparotomia xifo-umbilical e cervicotomia à esquerda), ou esofagectomia com acesso torácico, que incluía a toracotomia (acesso convencional) ou toracoscopia (acesso vídeo-assistido) à direita. Não houve diferença quanto ao tipo de procedimento cirúrgico entre os grupos gUTI e gALTA, sendo que a maioria dos pacientes foi submetida à esofagectomia trans-hiatal e o restante foi submetido à esofagectomia com acesso torácico (metade com toracotomia e a outra metade por vídeo-toracoscopia, Tabela 2). O tempo de duração da cirurgia, duração de anestesia, dias de permanência em UTI e dias de assistência de ventilação mecânica após a cirurgia foram similares entre o gUTI e o gALTA (Tabela 2).
Foi aplicada fisioterapia respiratória em todos os pacientes durante sua permanência na UTI, sem diferença estatística entre os grupos no número de atendimentos nesse período (Tabela 2). Os pacientes do gALTA receberam, em média, 12,3 atendimentos na enfermaria no período médio de 15,2 dias de internação hospitalar. No total, os pacientes do gUTI receberam em média 9,6 atendimentos, enquanto os pacientes assistidos pela equipe de fisioterapia até a alta hospitalar receberam 20,7 sessões.
Além disso, o gALTA permaneceu com o dreno pleural no hemitórax direito, em média, 4,5 dias a menos que o gUTI (p<0,05). Por outro lado, não foi observada diferença entre os dois grupos no tempo de permanência do dreno pleural do lado esquerdo do tórax (diferença de apenas 2 dias) e no tempo de internação no hospital, tendo o grupo que recebeu fisioterapia respiratória na enfermaria permanecido em média apenas 1 dia a menos (Tabela 2).
Os pacientes do gALTA apresentaram uma incidência três vezes menor de complicações pulmonares quando comparados ao do gUTI (p<0,05, Grafico 1). A menor incidência de CPO nos pacientes que receberam fisioterapia respiratória até a alta explica-se pela ocorrência de quatro vezes menos derrame pleural do que no gUTI (4 de 20 pacientes no gUTI vs 1 de 20 pacientes no gALTA, p<0,05) e de metade da incidência de broncopneumonia (2 de 20 pacientes do gUTI vs 1 de 20 pacientes do gALTA, p<0,05).
DISCUSSÃO E CONCLUSÃO
Complicações pós-operatórias (CPO) como broncopneumonia e insuficiência respiratória estão entre as mais freqüentes após a esofagectomia, excedendo mesmo a incidência de morbidade respiratória encontrada nas ressecções pulmonares4,21,22. As CPO prolongam a estadia hospitalar, aumentam os custos do tratamento e, por fim, a mortalidade cirúrgica4,23. A taxa de incidência dessas complicações encontradas no presente estudo variou de 5 a 30%, sendo menor do que as taxas descritas na literatura, que variam entre 17 e 88%12,23-25. Alguns estudos sugerem que certos fatores predispõem à incidência de complicações pós-cirúrgicas, tais como idade superior a 65 anos, função pulmonar deteriorada, presença de malignidade, sítio cirúrgico, desnutrição e desempenho físico e psicossocial4,11,14,17,26,27. Analisando alguns desses fatores no presente estudo, verificou-se que, apesar de não haver diferença estatística entre os grupos, o gALTA apresentou maior número de idosos e de pacientes com história tabágica do que o gUTI e, mesmo assim, apresentou significante menor incidência de CPO.
Os benefícios da fisioterapia respiratória obtidos pelos pacientes submetidos a cirurgias abdominais altas têm sido objeto de muitos estudos. Até o momento, porém, a grande maioria dos estudos avaliou os benefícios obtidos pelo atendimento da fisioterapia respiratória profilática28, ou comparou, no período pós-operatório, a efetividade de diferentes técnicas fisioterapêuticas, como o inspirômetro de incentivo, os exercícios com pressão positiva, a respiração profunda e a deambulação precoce - com efeito equivalente, excluindo-se pacientes de alto risco19,29.
Os resultados aqui observados apresentam evidências de que os benefícios da fisioterapia respiratória no período pós-crítico parecem ocorrer independentemente do critério de seleção para inclusão dos pacientes, já que não houve qualquer seleção de gravidade dos pacientes analisados (todos os prontuários foram estudados consecutivamente, sem exclusão). Além disso, os cuidados fisioterapêuticos foram iniciados já no período pós-operatório crítico em ambos os grupos, sem diferença estatística no tempo de permanência e no número de sessões de fisioterapia respiratória recebidas pelos pacientes na UTI, o que denota homogeneidade entre os grupos analisados. Portanto, os resultados benéficos no gALTA devem decorrer diretamente do prolongamento da fisioterapia respiratória até a alta hospitalar.
Quanto ao tempo de hospitalização, o hospital onde este estudo foi realizado é considerado referência para cirurgia abdominal, recebendo pacientes com um elevado número de co-morbidades, o que pode explicar o prolongado período no hospital.
De maneira geral, a continuidade do cuidado respiratório nesses pacientes cirúrgicos visou a manutenção das vias respiratórias livres de secreção, a redução da incidência de atelectasias e a melhora na ventilação pulmonar30. No presente estudo, os benefícios foram observados, apesar de os pacientes receberem, em média, menos de uma sessão de fisioterapia respiratória por dia.
O uso do dreno torácico é freqüente no pós-operatório de esofagectomias nos casos de acesso torácico, a fim de drenar o líquido acumulado no espaço pleural20. Apesar de sua importância no pós-operatório, os drenos limitam a mobilidade dos pacientes e causam dor em alguns, reduzindo a eficiência da tosse e podendo levar à hipoventilação, causar atelectasias e infecção pulmonar31. A fisioterapia respiratória, por meio das técnicas de reexpansão pulmonar e de deambulação precoce, objetiva reduzir ou prevenir o acúmulo de secreção e melhorar a ventilação pulmonar, facilitando a drenagem do líquido do espaço pleural, diminuindo assim o desconforto do paciente e as taxas de infecção. Os resultados deste estudo sugerem que a fisioterapia respiratória na enfermaria pôde estimular a saída de liquido do espaço pleural pelo dreno torácico, auxiliando a equipe médica na antecipação da obtenção dos critérios de sua retirada (débito seroso menor de 100 ml em 24 horas), já que houve remoção mais precoce do dreno no gALTA23. Além disso, os pacientes desse grupo apresentaram menor incidência de broncopneumonia e derrame pleural, porém sem redução no tempo de hospitalização.
Este estudo foi realizado de forma retrospectiva e os prontuários dos pacientes analisados consecutivamente, reforçando a importância dos resultados, já que não houve critérios de exclusão. Alguns fatores podem ser limitantes na análise destes resultados, visto que os prontuários podem subestimar informações da rotina clínica, omitindo-se anotações pela ausência de padronização em seu preenchimento. Por outro lado, o grupo que recebeu fisioterapia respiratória na enfermaria foi atendido cronologicamente após o grupo que não recebeu esse tratamento; assim, a utilização de modalidades cirúrgicas ou anestésicas mais recentes ou mesmo a maior experiência dos cirurgiões poderia ter interferido, pelo menos parcialmente, nas diferenças observadas entre os grupos. No entanto, isso não parece ter ocorrido porque o tempo cirúrgico, as abordagens cirúrgicas, a duração do efeito anestésico e o tempo que os pacientes permaneceram na UTI no pós-operatório foram similares entres os dois grupos. Além disso, não houve diferença significativa entre os grupos no tempo de permanência e no número de sessões de fisioterapia recebidas pelos pacientes na UTI.
Dessa forma, acredita-se que houve homogeneidade entre os grupos analisados, sem influência da intervenção recebida na UTI. De qualquer maneira, entende-se que a realização de estudos prospectivos aleatorizados seja essencial para corroborar os resultados aqui obtidos ou expandi-los, incluindo variáveis como a quantificação da dor, da mortalidade e da função pulmonar.
Com base nos resultados obtidos, conclui-se que a continuidade dos procedimentos de fisioterapia respiratória após o período crítico até a alta hospitalar parece ter papel fundamental na diminuição da incidência de complicações pulmonares pós-operatórias em pacientes submetidos à esofagectomia por câncer.
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Autores:
Adriana Claudia LunardiI;
Juliana Mantovani ResendeII;
Olívia Maio CerriII;
Celso Ricardo Fernandes de CarvalhoIII
IFisioterapeuta; Ms. do Fofito/FMUSP (Depto. de Fonoaudiologia, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP)
IIFisioterapeutas
IIIFisioterapeuta; Prof. Livre-docente do Fofito/FMUSP
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